Contravenção



Ana Santos 
António Bolota 
Carla Filipe 
Diogo Bolota 
Eduardo Fonseca e Silva 
João Bragança Gil
Luísa Jacinto
Maria Luiza Toral 
Shirley Paes Leme 
Tiago Mestre

Gruta

12 de julho a 02 de agosto de 2025



















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Contravenção

Dentro de uma mala despachada em um vôo internacional, são transportadas as obras de seis dos dez artistas que compõem essa exposição. É como se, em um passe de mágica, retiradas dos ateliês ou do depósito das galerias de arte, elas fossem passíveis de perder o estatuto imposto sobre si e se tornassem outra coisa, mera bagagem. 

Destituídas de seu significado a fim de atravessar o oceano Atlântico, manifestam um risco que também se transforma em um ato de coragem e confiança. Havia a possibilidade da alfândega brasileira devolver o valor artístico a esses pássaros e pratos pintados, aos pedaços de madeira e gesso colados, aos tecidos cuidadosamente dobrados e aos postais embalados junto a pedaços de vidro riscados; e acabar os apreendendo como contrabando. 

Esse delito menor é, todavia, mais do que apenas gesto inaugural da exposição como performance, ele se configura também como a própria prática dos artistas da mostra. As obras de Contravenção já são deslocamentos e reconfigurações, pequenos desvios que operam em busca do maior resultado simbólico. Ao serem desembaladas, tendo a sua integridade atestada após viajar dentro do depósito escuro da aeronave, as obras agora são reinformadas de seu valor pela parede branca da Gruta, pela iluminação, neutra mas ainda ofuscante, e por esse texto que tenta, de certo modo, também restituir essa cena.

Se faz importante contextualizar: esse desvio é convocado pelo Buraco, espaço autônomo de arte em Lisboa, Portugal. Se propõe uma aproximação de artistas brasileiros e portugueses, de diferentes gerações e com práticas distintas. Há, através disso, um convite também feito ao fruidor: pensar o que se cria nesse espaço do entre, nessa margem simultaneamente real e imaginária, que abriga contradições, sobreposições e desvios: uma heterotopia. 

As obras aqui expostas sequer tentam esconder essa deriva. As duas pinturas de Luísa Jacinto suspendem a tinta no tecido, dando ao spray uma certa fluidez antes impossível em sua própria materialidade. No espaço, esses campos de cor se tornam etéreos, flutuantes. De modo análogo, António Bolota utiliza a madeira e o gesso como massa pictórica, resultando em uma espécie de pintura que se contrasta a suas usuais instalações site-specific, ainda que mantenha uma materialidade familiar. Maria Luiza Toral também opera uma reorganização pictórica, seja pelo uso dos filmes polarizadores como modificador da percepção ou pelo uso do mármore encontrado na rua como comentário irônico à impessoalidade minimalista. Tiago Mestre, por sua vez, faz isso pelo deslocamento. A cerâmica é o desenho de uma paisagem: o cabo do punhal parece tornar-se o caule de uma palmeira. No chão, os cachimbos se transfiguram em cobras, tal como o material orgânico na obra de Shirley Paes Leme ganha outro sentido quando acoplados aos filtros de ar. Se elabora uma vulnerabilidade latente a partir dos limites entre cada material, entre cada intenção. 

Todo deslocamento, entretanto, resulta também em um reposicionamento. Esse é o convite feito no desenho de Diogo Bolota, homônimo a essa mostra. Perpendicular à parede, vemos a própria exposição através da lente dos óculos do artista. Perceber é posicionar-se. No desenho, as obras ganham outras proporções, preenchem o espaço de outra maneira. Isso se deve às relações que se estabelecem entre cada trabalho dentro do cubo branco. João Bragança Gil sobrepõe desenhos riscados no vidro às paisagens dos Açores – contraste entre uma percepção de paraíso e guerra. Os pratos de Eduardo Fonseca e Silva são verticalizados, retirados da mesa e expostos na parede como suvenires da viagem que acabam como pintura. Em sequência, a natureza morta de cada um parece montar uma cena. A montagem, tomando de empréstimo sua definição fílmica, elabora sentido no espaço de conflito entre as partilhas sensíveis. 

Isso tudo acontece em um jogo de equilíbrio tênue, tal qual os pássaros de brinquedo de Ana Santos, apoiados em garrafas de cerveja. Em um jogo de suspensão, por alguns centímetros, o centro gravitacional não leva as aves ao chão. As margens se esmaecem, os limites são desafiados. O que era antes específico se faz, agora, indiscernível. A pergunta de Carla Filipe já nos foi respondida por Hélio Oiticica e tem, mais uma vez, sua resposta reforçada: os marginais são, por fim, heróis. Por sorte, esses objetos passaram despercebidos em seu trânsito pelo oceano Atlântico e puderam se relacionar aqui entre si e com outros artistas, sob outra maneira de percebê-los, livres para cometer outros delitos.



















Misdemeanor


Inside a suitcase checked in on an international flight traveled the works of six of the ten artists featured in this exhibition. As if by magic, removed from their studios or from gallery storage, they risked losing their imposed status and becoming something else, mere luggage.
Stripped of their meaning in order to cross the Atlantic, they embodied a risk that was also an act of courage and trust. There was always the possibility that Brazilian customs might restore their artistic value to these painted birds and plates, to the wood and plaster pieces glued together, to the carefully folded fabrics and postcards packed alongside scratched glass, only to seize them as contraband.

This minor offense is more than an inaugural gesture, a performance that opens the exhibition; it is also the very practice of the artists on view. The works in Contravenção are already acts of displacement and reconfiguration, small deviations seeking the greatest symbolic yield. Once unpacked, their integrity intact after the darkness of the aircraft hold, they are re-inscribed with value by Gruta’s white walls, its neutral yet dazzling light, and by this text, which likewise tries to restore the scene.

It is important to contextualize: this deviation is called forth by Buraco, an autonomous art space in Lisbon. Its proposal is to bring together Brazilian and Portuguese artists of different generations and practices. In doing so, it invites the viewer to reflect on what is created in this in-between space, on this margin at once real and imaginary, a place of contradictions, overlaps, and detours: a heterotopia.

The works here do not attempt to disguise this drift. Luísa Jacinto’s two paintings suspend pigment on fabric, giving the spray a fluidity previously impossible in its own materiality. In space, these color fields become ethereal, floating. Likewise, António Bolota treats wood and plaster as a pictorial mass, creating a form of painting that contrasts with his usual site-specific installations while retaining a familiar materiality. Maria Luiza Toral also reorganizes the pictorial, whether through polarizing films that alter perception or marble found in the street as an ironic commentary on minimalist impersonality. Tiago Mestre works through displacement: ceramics sketch a landscape; the hilt of a dagger becomes the stem of a palm tree. On the floor, pipes turn into snakes, just as the organic material in Shirley Paes Leme’s work takes on new meaning when paired with air filters. A latent vulnerability emerges from the boundaries between each material, each intention.

Every displacement, however, entails a repositioning. This is the invitation in Diogo Bolota’s drawing, which gives the exhibition its name. Perpendicular to the wall, we see the show through the lens of the artist’s glasses. To perceive is to position oneself. In the drawing, the works assume new proportions, filling space differently. This stems from the relationships between the pieces within the white cube. João Bragança Gil overlays scratched-glass drawings onto Azorean landscapes, a contrast between paradise and war. Eduardo Fonseca e Silva’s plates are verticalized, lifted from the table and mounted on the wall like souvenirs of a trip that have become paintings. In sequence, each still life seems to set a scene. The montage, in the cinematic sense, generates meaning in the space where sensitive divisions collide.

All of this unfolds in a delicate balancing act, like Ana Santos’s toy birds resting on beer bottles. Suspended just centimeters from the tipping point, their center of gravity does not bring them down. The margins fade, boundaries are tested. What was once specific becomes indiscernible. Carla Filipe’s question has already been answered by Hélio Oiticica and is echoed once more: the marginalized are, in the end, heroes. Fortunately, these objects passed unnoticed in their passage across the Atlantic and now interact freely with each other and with the other artists, under a new way of seeing, free to commit other crimes.