Tesouro das Feras - Bruno Novelli
Galeria Xico Stockinger - MACRS - Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul
20 de outubro de 2021 a 26 de novembro de 2021
Alquimia, fogo verde, chroma key. Tesouro das Feras é o resultado da pesquisa de Bruno Novelli acerca de uma ainda mais nova figuração, profundamente relacionada ao desenvolvimento das imagens nas mídias digitais. É a partir de uma pulsão autogeradora, autopoiética, causada pelo impacto das imagens, que o artista desenvolve um trabalho que mistura um imaginário vernacular e contemporâneo.
As pinturas se formam por meio de um processo apropriativo, desenvolvido com a utilização de samples: trechos de tábuas sumérias, obras góticas e faturas antropofágicas se misturam a um território novo, inexplorado, dominado por feras antropomórficas, seres sobrenaturais, divindades: o Buda, o Peixe-Bispo, a Serpente. As entidades místicas agenciam uma cosmogonia. Gênese de um mapa-mundo, atlas não cartográfico, de uma expedição de descobrimento de um habitat próprio dessas feras reterritorializadas pelas apropriações.
A série Buda (2019), aqui representada por três pinturas, é desenvolvida a partir da figura central do Buda Primordial, sendo cada uma delas uma multiplicidade de sobreposições de imagens distintas, referências tanto de outras pinturas quanto de um repertório popular. A presença da palmeira de Sigmar Polke em Palm Tree on Fabric (1969) e de uma cobra-figurinha em Buda III (2019) demonstram como o artista aborda não só a pintura, mas a própria figuração. São meditações criadoras de mitos, planos astrais alcançados através de um fluxo de consciência imagético superposto à tela.
A repetição ritmada é um tipo de mantra elaborado não só a partir de apropriações, mas também pela própria auto-referência entre as pinturas de Novelli: a figura do Fauno, aparece tanto em Fauno (2019) e Trim (2019), quanto em Buda II (2019); as feras de Paradisíaca (2020), Rolê ZN (2021), No Caminho (2021), Tocaia Grande (2021) e Leão Verde (2021) compartilham o padrão iridescente que é tanto camuflagem quanto aviso de perigo. Em Paradisíaca (2020), há, inclusive, uma meta-apropriação. Os demônios, que testemunham a interação entre o Peixe-Bispo e um leão sumério, são atribuídos a primeira pintura conhecida de Michelangelo, A Tentação de Santo Antônio (c. 1487-89), que é, por sua vez, baseada em uma gravura de mesmo nome do gravador alemão Martin Schongauer (c. 1470 - 1475).
Enquanto há na apropriação dos demônios um detalhamento, as pinceladas diferem às do leão e às do Peixe-Bispo; a fatura de Novelli é contrastada, heterogênea. O fundo é apresentado na tela crua com elementos em spray fluorescente e há uma moldura de ondas vazada que, por mais que seja uma camada crua da tela, se põe sobreposta a pintura. Em outros momentos, como em Sol e Macaco (2019) e Afrodisíaca (2018), a figura dos animais é menos detalhada, criando com o fundo um contraste entre blocos de cor e vegetação.
Bruno Novelli coloca a pintura próxima da colagem através dessas máscaras e camadas de tinta. As figuras são decalcadas, delimitadas pela sobreposição e diferença entre cores, faturas e formas. Os samples criam uma vitalidade tátil a partir de uma superfície mutável. A tinta se acumula nos decalques, cria planos e recortes, evidencia diversas abordagens nas pinceladas. Há alta definição, mas há também fatura solta. Tal heterogeneidade potencializa o caráter do sampler: a apropriação de elementos pictóricos a fim de dar à imagem um novo significado baseado no choque das representações.
O resultado desse somatório de imagens, de faturas, de decalques, é a construção de uma rede de significados, de uma cosmogonia. São imagens míticas que detalham a gênese de um outro mundo, povoado por animais fantásticos com cores sobrenaturais. Uma alquimia registrada em algum lugar entre a glândula pineal e um sonho lúcido.
Chico Soll,
Outubro, 2021
Outubro, 2021