O Romance Morreu - Ana Júlia Vilela


Galeria Ecarta - Porto Alegre, RS.
março de 2022



Da mesma forma que a pintura, o romance já teve sua morte declarada inúmeras vezes. Rubem Fonseca, em crônica que dá título ao livro homônimo a esta mostra, analisa os diversos assassinos do romance, dentre eles o cinema, a televisão e a internet. Diferentemente da pintura, o autor afirma que os escritores sempre mantiveram o romance vivo - ou ao menos tentaram mantê-lo respirando. Já os pintores são sempre os que decretaram a morte de seu ofício, tentavam esgotar os modos de pintar, os temas, os materiais. Há como matar algo que já está morto? Será que ambos têm sete vidas como o gato?

Os textos reunidos no livro também compartilham com a pintura de Ana Júlia Vilela outro atributo: são crônicas - recortes de um cotidiano, com doses de ficção e realidade, facilmente relacionáveis a experiências próprias do espectador. A pintura de Ana, entretanto, pode roubar da expressão que dá nome ao gênero, a conotação médica: é crônica - constante, permanente. A artista certa vez me contou que nunca desiste de uma pintura. Por mais inacabada que uma pintura esteja, Ana sempre encontra uma maneira de "fazê-la funcionar". Ou será que é a pintura que nunca desiste dela, que conserta a artista? Que se deixa preencher por camadas, rasuras, desenhos, até que se torne algo mais próximo, mais íntimo.

As pinturas de Ana Júlia Vilela habitam um espaço entre a figuração e a abstração; entre uma ficção e uma experiência; entre uma memória própria e uma história contada por outra pessoa. Talvez seja por essa interface do entre, nesse intermezzo, que se torna possível, para a artista, explorar essa multiplicidade. Em uma tentativa de organizar tantas diferenças - figurações, textos, abstrações - a artista apresenta também suas pinturas como instalações, tentando unificar, contextualizar os sentidos entre elas. Mais importante, entretanto, é o público criar as suas próprias relações, suas próprias correspondências - seja encontrar a figuração presente na abstração da artista, bem como reviver suas memórias e experiências.

Esse processo de criar uma relação presente com a memória é um artifício constante nas obras de Ana. Cada pintura funciona quase como uma página de um diário esquecido por alguns anos no fundo da gaveta, escondido da leitura dos irmãos, confidenciado apenas aos amigos mais próximos. As cores, já um tanto dessaturadas, indicam uma intensidade latente, o fulgor da recordação de um sentimento, o ensaiar de uma conversa que não aconteceu ainda, o cheiro no travesseiro do perfume do amante que ainda perdura na fronha depois do término. São, estas, experiências comuns e que se repetem ao longo de uma vida, mas que a cada reincidência se apresenta de uma maneira única. A cada morte do romance, há sempre um outro se ensaiando. É ainda clichê dizer que a cada término, há um recomeço? Se for, tudo bem.

Talvez o romance nunca tenha morrido, assim como a pintura. Talvez ele tenha morrido e substituído por outra coisa e ninguém percebeu. Talvez a pintura seja o novo romance e o romance a nova pintura? Que a pintura morreu, não tenho dúvidas, assim como não tenho que ela segue viva, mesmo que outra coisa. Ana Júlia Vilela ainda insiste na pintura e no romance. Talvez quando ela desista dos dois, eles deixem de existir por um breve momento, ao menos para ela. Eu sei, entretanto, que o romance e muito menos a pintura desistiriam dela.


Chico Soll,
Outubro, 2021