BIO


Chico Soll (Porto Alegre, 1992) é produtor executivo e curador independente. Participou do Comitê de Acervo e Curadoria do MACRS (2019 - 2021) e do Comitê de Curadoria da Fundação Ecarta (2020 - 2021). De 2018 a fevereiro de 2020 foi curador, gestor e produtor da Galeria Prego, espaço autônomo de pesquisa em curadoria e produção de exposições. Em 2019, foi indicado ao Prêmio Açorianos na categoria Curador, pela exposição "Lento Crepúsculo", realizada com Fernanda Medeiros e Gabriel Cevallos durante a programação do 5º Festival Kinobeat; e um dos idealizadores do Pólvora - Festival dos Espaços Autônomos de Arte. Como curador, investiga principalmente a produção de jovens artistas, nascidos no final da década de 80 e o início da década de 90. Seu objeto de pesquisa orbita entre os temas de ubiquidade, identidade, cotidiano e afetividade em lugares digitais ou não.


contato@chicosoll.com
+55 51 991835409


CV


Comitês
2019 - 2021 – Comitê de Acervo e Curadoria do MACRS - Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul.
2020 - 2021 – Comitê de Curadoria da Fundação Ecarta - Porto Alegre, RS.

Júris de Seleção

2019 – Residência Linha, seleção de 10 artistas para ocuparem o espaço de ateliês compartilhados por 05 meses - Porto Alegre, RS
2018– Edital Atlas Nº2, exposição de Bruno Éder, Fercho Marquéz, Fernando Moleta, Mariah Philippe, Mariani Pessoa, Rafaela de la Rocha, Tales Macedo e Wagner Olino - Galeria Prego - Porto Alegre, RS

Elaboração de Editais

2019 – Residência Linha, espaço de ateliês compartilhados e centro cultural - Porto Alegre, RS
2018 – Edital Atlas Nº2, edital para seleção de artistas a participarem da exposição coletiva. Realizado em parceria com a Incubadora de Projetos Artísticos - sob coordenação da Prof. Dr. Adriane Hernandez - UFRGS.
2015 – Convocatória 331, seleção de artistas para ocuparem três períodos expositivos na Fotogaleria Virgílio Calegari - Instituto Estadual de Artes Visuais - Porto Alegre, RS

Curadorias

2022 - À Luz da Tela, de Pablo Brazil. Galeria Andrea Rehder - São Paulo, SP.
2022 - Materes Volans, de Bruno Ferreira e Marc do Nascimento. 25M - São Paulo, SP.
2022 - Atlas Nº4: Não sou legal, tô te dando mole, de Anália Moraes, Maria Livman, Mari Ra, Marina Borges, Marina Woisky, Mariano Barone, Lucca Saad. Massappê - São Paulo, SP.
2021 - Tesouro das Feras, de Bruno Novelli - Galeria Xico Stockinger. MACRS - Porto Alegre, RS.
2021 – O Romance Morreu, de Ana Júlia Vilela. Galeria Ecarta - Porto Alegre, RS.
2019 – Ruína, de Bruno Éder. Anexo Sala Negra, IAB-RS - Porto Alegre, RS.
2019 – Zonzo, de Ana Júlia Vilela, Eduarda Freire, Daniel Higa, Mariano Barone e Santiago Pooter. Galeria Prego - Porto Alegre, RS.
2019 – Ocupação 4, co-curadoria com Alexandre Santos e Neiva Bohns, consistindo em uma série de quatro intervenções escultóricas, ao longo do período expositivo, a serem realizadas pelos artistas Maria Paula Recena (17/08), Daniel Higa (31/08), Elcio Rossini (14/09) e Tetê Barachini (28/09). MACRS - Porto Alegre, RS.
2019 – A caminho; estava aqui ontem, Individual de Bárbara Baron. Galeria Prego - Porto Alegre, RS.
2019 – Prêmio IEAVI: Catalizador de Trajetórias, curadoria com Henrique Menezes. Galeria Augusto Meyer,Instituto Estadual de Artes Visuais. Porto Alegre, RS
2018 – Lento Crepúsculo, co-curadoria com Fernanda Medeiros e Gabriel Cevallos . 5º Festival Kinobeat, Pinacoteca Ruben Berta e Pinacoteca Aldo Locatelli - Porto Alegre, RS
2018 – Atlas Nº2, de Bruno Éder, Fercho Marquéz, Fernando Moleta, Mariah Philippe, Mariani Pessoa, Rafaela de la Rocha, Tales Macedo e Wagner Olino. Galeria Prego - Porto Alegre, RS.
2018 – Renascer, Individual de Filipi Filippo - Galeria Prego, Porto Alegre, RS.

2018 – A última vez, de Ana Júlia Vilela e Roberta Sant’Anna. Galeria Prego, Porto Alegre - RS.

2018 – Atlas Nº1, de Felipa Queiroz, Filipi Filippo, Letícia Lopes, Lucas Schultz, Lucia Marques e Paulo H. Lange. Galeria Prego -  Porto Alegre, RS.
2016 – Moodboard, de Alexandre Copês, Filipi Filippo, Letícia Lopes e Raul Dotto Rosa. Galeria Sotero Cosme, MACRS - Porto Alegre, RS.
2015 – Acervo MACRS: Pequenos Formatos. Quiosque da Cultura - Gravataí, RS.
2015 – Ruídos - Individual de Rafael Chaves. Galpón - Porto Alegre, RS.

À Luz da Tela - Pablo Brazil


Andréa Rehder Arte Contemporânea - São Paulo, SP
agosto de 2022



Os tubos de alumínio, além de fonte da tinta que se acumula na superfície da tela e é marcada por gestualidade, também dão vazão a um tipo luminosidade específico. Pablo Brazil, ciente disso, apresenta em "À Luz da Tela" sua produção recente, inspirado pelas imagens de um imaginário queer acessado através das telas dos computadores e celulares. É possível entender que essa luz, para Pablo, é tanto brilho do LCD quanto pintura.

Em suas obras, corpos lânguidos por vezes um tanto distorcidos e azulados de forma melancólica são contrapostos por um brilho marcante. O rosa neon do underpainting ressurge por trás de uma fatura azulada que dá forma as figuras de corpos, marcados pelo contraste de linhas escuras com o fundo. Quando menos se espera, a cor escapa, reanima e dá brilho a esse rebaixamento do azul. Em "Eyes without a face", esse interesse do artista fica bastante evidente. Cada vez mais vemos menos os corpos, predomina a luz que emana do pigmento.

Estes corpos nus, como os das pinturas "Sonho Elétrico", "Drink Before the War" e "Cheers for fears", permitem uma aproximação ao corpo escultórico de David e nos transmitem uma certa angústia, um desespero apático. Aludem a uma possível sedução da própria tristeza que pode, ao mesmo tempo, operar como uma potência de vida - uma interface de acesso ao mundo através de sentimentos melancólicos. Ficar na presença desses corpos é perceber a luz azul que os ilumina e o rosa que em rasgos por vezes aparece.

As abstrações de cor de "Spectrum 1" e "Spectrum 3" são indícios ainda mais claros desse interesse do artista. Ainda que pura cor, entretanto, são um tanto dessaturadas. Essa luminosidade mais baixa se deve ao controle que Pablo tem da tinta e como ela é colocada na tela. É como se Pablo tocasse no vidro de um monitor e distorcesse os raios RGB que se adicionam em luz branca, decidindo a imagem que é formada. O que sai dos tubos não é mais apenas pigmento e médium, é pura luz.

Os caminhos que levam Pablo a pintar são acessíveis a todos nós. Ainda assim, se alguém tentar fotografar o próprio corpo embebido do azul de uma tela fora de sintonia, como o das pinturas "Carol Anne they are here 1, 2 e 3", o resultado não se aproximaria de forma alguma à representação subjetiva de Pablo.

Na projeção dessa luz sobre a pintura "OA-8E" é que surge uma tomada de consciência: a pintura de Pablo não é só luz. É tinta, fatura, cor, intenção. A luz que toca a tela é cada vez mais luz. É cada vez mais tinta. É cada vez mais pintura.


Chico Soll,
Agosto, 2022


Materes Volans - Bruno Ferreira e Marc do Nascimento


25M Sala de Projetos
Maio a Junho de 2022



Do segundo andar, pela sacada da Galeria Metrópole, vejo esparsas copas de árvores e os prédios ao fundo denunciam a falta de um horizonte. Se eu pego meu celular e abro o instagram, meu dedo desliza pela interface e toca outras paisagens compartilhadas. Em alguns milhares de anos, sendo otimista, quando a paisagem urbana de São Paulo estiver reduzida a ruínas, talvez seja possível ver, a noroeste daqui, o que ainda restaria do Pico do Jaraguá, como outrora já fora visto. Essa natureza que mistura concreto e mata-atlântica é a única que conheço. Das outras, puras, intocadas, virgens: só li nos livros ou assisti em programas de TV, mediadas por telas, interpretadas por dados que fingem não tomar uma posição. É a partir do entendimento dessa paisagem estratificada pelo acúmulo de materialidades, organicidades e inogarnicidades, dados científicos e especulações empíricas, que "Materes Volans" se apresenta. O neologismo que dá nome a exposição aponta para um lugar volátil entre materialidades; uma representação de uma natureza que passa pela digitalização, pela coleta de dados e pelo que resta como imagem depois disso tudo. A articulação entre os trabalhos dos artistas Bruno Ferreira e Marc do Nascimento é posicionada no meio da sedimentação que forma essa noção sócio-construída de natureza - que engloba tanto a geosfera quanto a biosfera, a antroposfera e a tecnosfera.

Bruno especula sobre um futuro pré-humano: as culturas de bactérias que formaram a atmosfera são profecias de que o fim não é a única saída. Em "Vale da Estranheza", a paisagem-pélvis artificial se propõe a abrigar uma espécie de proto-sopa-primordial, onde a atmosfera propícia à vida teria sido criada. O termo que dá título ao trabalho se refere a uma teoria estética que relaciona a resposta emocional que temos à humanização de objetos tecnológicos. O "Vale da Estranheza" seria expresso, graficamente, no momento em que a semelhança deixa de ser positiva e passa a trazer desconforto. A paisagem, aqui de gesso, resina e água, é tanto a representação gráfica desses dados quanto objeto. A vida, expressa no Scoby - gosma simbiótica de fungos e bactérias - se posiciona no centro desse vale, talvez sem conseguir entender a inogarnicidade dos materiais que a circundam.

Esse vale-objeto-gráfico de Bruno Ferreira poderia também estar manifesto em mapa topográfico, tal qual o pico do Jaraguá se mostra no trabalho de Marc do Nascimento. O desenho-dado da instalação "Montanha pulverizada para John Mawe 2 (da série Terra Incógnita)" é paisagem-interface que interpreta os dados de altitude do relevo do monumento que, em outros tempos, se destacava no horizonte de São Paulo. O desenho topográfico se esforça para demonstrar uma imparcialidade, mas esconde por entre as camadas das linhas de altitude que o pico do Jaraguá certa vez foi apenas montanha, outra foi sinônimo de mineração de ouro e hoje abriga torres de transmissão de TV. Há sempre algo que permanece, ainda quando o sentido seja alterado e, mesmo na procura por algo duradouro, é difícil encontrar uma constante. Através da interface dos dados, da digitalização dessa ficção do que é-foi-será o Pico do Jaraguá, Marc elabora uma imagem que chama de espectral, atravessada pela interface técnica dos softwares.

Não há como deixar de pensar sobre futuro e sobre como vivenciaremos esse futuro. É inegavel que vivemos o antropoceno, era da marca irreparável da presença humana na terra. O que há de restar aqui depois de nós? As bactérias, fungos e montanhas já nos antecederam e irão nos suceder. Será que o prolongamento dos polegares opositores, catalizados pelo uso dos dispositivos móveis, nos ajudará a sobreviver? Os dados que inventamos, catalogamos e carregamos em databases sobre tudo, dão conta de representar o mundo? Essas não são perguntas para as quais se tenham respostas definitivas, podemos apenas teorizar e elaborar futuros distantes que serão vivenciados apenas pelo o quê sobreviver. Até lá, sigo tomando smoothies tingidos de azul e verde pela Espirulina, na promessa de saúde e conexão com a bactéria que um dia ajudou a formar a vida.


Chico Soll,
Maio, 2022


Atlas Nº4: Não sou legal, tô te dando mole - Anália Moraes, Lucca Saad, Mariano Barone, Maria Livman, Mari Ra, Marina Borges e Marina Woisky


Massapê Projetos - São Paulo, SP
março de 2022



Atlas - o titã que carregava o mundo nas costas - deu origem ao nome de um tipo específico de publicação: o conjunto de cartografias, mapas, territórios. O termo, já desterritorializado de seu significado inicial, hoje pode representar qualquer organização de imagens em conformidade com uma temática central: atlas geográfico, atlas de anatomia, atlas de memórias… A série de exposições "Atlas" (2018 - ) parte de um argumento inicial de organização e visualização de uma coleção de trabalhos de arte a partir do encontro entre eles, cuja linha conceitual é desenvolvida a posteriori. O que nos interessa é ser nômades: observar estes trabalhos juntos e percorrer a partir deles outros territórios.

A 4ª edição do projeto "Atlas" surge do enfrentamento da produção de sete artistas que, espontaneamente, sentiram que elaboram raciocínios apontando a uma mesma direção. A partir de conversas informais entre os artistas e pontos de contatos das suas produções, se explicita na exposição a relação de uma sensorialidade tátil.

O toque, o passar de dedos superficialmente na pele, o encontro de olhares, o mostrar o suficiente para provocar, deixar-se ver. Insinuações discretas de interesses, pequenos rituais de sedução. Interação sutil, ainda que cheia de segundas intenções. É inevitável não pensar no corpo. A pele é tanto a textura quanto o convite visual ao toque.

O desenho riscado no esmalte, a unha que percorre a pele. O látex, inorgânico e ainda assim frágil. A impressão pesada do corpo no gesso, o gesto leve no óleo - quase sem marcas da fatura. A pele também marca, arranha, imprime as dobras do tecido pelo peso do corpo.

Toda a sensação evidenciada pelas obras aqui presentes é sempre múltipla, têm diversas camadas de percepção. A primeira delas pode ser o contato dessas materialidades dentro de uma mitologia própria de cada artista. Tal camada é a construção de um significado que já é sensorial por si só, dentro do seu próprio sistema. A segunda camada nos propõe um convite: a extremidade tátil, quase ao alcance da mão, é própria do toque ou da visão e da visualidade? Será que o que se sente ao olhar para a obra, é a mesma que se sentiria caso a tocasse?

Por fim, há uma terceira camada háptica: entre os trabalhos, como se dá esse toque? Será que a forma tridimensional, envolta no látex ou tecido, resultaria em um corpo definido? Se a boca tocasse o gesso, teria gosto de quê? Se não foi a unha que riscou o esmalte branco, o que foi?
Flerte. Parece doce, mas é áspero. Caso alguém tenha ainda alguma dúvida, é preciso deixar bem claro:

Não sou legal, tô te dando mole.



Chico Soll,
Março, 2022


Tesouro das Feras - Bruno Novelli


Galeria Xico Stockinger - MACRS - Museu de Arte Contemporânea  do Rio Grande do Sul
20 de outubro de 2021 a 26 de novembro de 2021



Alquimia, fogo verde, chroma key. Tesouro das Feras é o resultado da pesquisa de Bruno Novelli acerca de uma ainda mais nova figuração, profundamente relacionada ao desenvolvimento das imagens nas mídias digitais. É a partir de uma pulsão autogeradora, autopoiética, causada pelo impacto das imagens, que o artista desenvolve um trabalho que mistura um imaginário vernacular e contemporâneo.

As pinturas se formam por meio de um processo apropriativo, desenvolvido com a utilização de samples: trechos de tábuas sumérias, obras góticas e faturas antropofágicas se misturam a um território novo, inexplorado, dominado por feras antropomórficas, seres sobrenaturais, divindades: o Buda, o Peixe-Bispo, a Serpente. As entidades místicas agenciam uma cosmogonia. Gênese de um mapa-mundo, atlas não cartográfico, de uma expedição de descobrimento de um habitat próprio dessas feras reterritorializadas pelas apropriações.

A série Buda (2019), aqui representada por três pinturas, é desenvolvida a partir da figura central do Buda Primordial, sendo cada uma delas uma multiplicidade de sobreposições de imagens distintas, referências tanto de outras pinturas quanto de um repertório popular. A presença da palmeira de Sigmar Polke em Palm Tree on Fabric (1969) e de uma cobra-figurinha em Buda III (2019) demonstram como o artista aborda não só a pintura, mas a própria figuração. São meditações criadoras de mitos, planos astrais alcançados através de um fluxo de consciência imagético superposto à tela.

A repetição ritmada é um tipo de mantra elaborado não só a partir de apropriações, mas também pela própria auto-referência entre as pinturas de Novelli: a figura do Fauno, aparece tanto em Fauno (2019) e Trim (2019), quanto em Buda II (2019); as feras de Paradisíaca (2020), Rolê ZN (2021), No Caminho (2021), Tocaia Grande (2021) e Leão Verde (2021) compartilham o padrão iridescente que é tanto camuflagem quanto aviso de perigo. Em Paradisíaca (2020), há, inclusive, uma meta-apropriação. Os demônios, que testemunham a interação entre o Peixe-Bispo e um leão sumério, são atribuídos a primeira pintura conhecida de Michelangelo, A Tentação de Santo Antônio (c. 1487-89), que é, por sua vez, baseada em uma gravura de mesmo nome do gravador alemão Martin Schongauer (c. 1470 - 1475).

Enquanto há na apropriação dos demônios um detalhamento, as pinceladas diferem às do leão e às do Peixe-Bispo; a fatura de Novelli é contrastada, heterogênea. O fundo é apresentado na tela crua com elementos em spray fluorescente e há uma moldura de ondas vazada que, por mais que seja uma camada crua da tela, se põe sobreposta a pintura. Em outros momentos, como em Sol e Macaco (2019) e Afrodisíaca (2018), a figura dos animais é menos detalhada, criando com o fundo um contraste entre blocos de cor e vegetação.

Bruno Novelli coloca a pintura próxima da colagem através dessas máscaras e camadas de tinta. As figuras são decalcadas, delimitadas pela sobreposição e diferença entre cores, faturas e formas. Os samples criam uma vitalidade tátil a partir de uma superfície mutável. A tinta se acumula nos decalques, cria planos e recortes, evidencia diversas abordagens nas pinceladas. Há alta definição, mas há também fatura solta. Tal heterogeneidade potencializa o caráter do sampler: a apropriação de elementos pictóricos a fim de dar à imagem um novo significado baseado no choque das representações.

O resultado desse somatório de imagens, de faturas, de decalques, é a construção de uma rede de significados, de uma cosmogonia. São imagens míticas que detalham a gênese de um outro mundo, povoado por animais fantásticos com cores sobrenaturais. Uma alquimia registrada em algum lugar entre a glândula pineal e um sonho lúcido.

Chico Soll,
Outubro, 2021


O Romance Morreu - Ana Júlia Vilela


Galeria Ecarta - Porto Alegre, RS.
março de 2022



Da mesma forma que a pintura, o romance já teve sua morte declarada inúmeras vezes. Rubem Fonseca, em crônica que dá título ao livro homônimo a esta mostra, analisa os diversos assassinos do romance, dentre eles o cinema, a televisão e a internet. Diferentemente da pintura, o autor afirma que os escritores sempre mantiveram o romance vivo - ou ao menos tentaram mantê-lo respirando. Já os pintores são sempre os que decretaram a morte de seu ofício, tentavam esgotar os modos de pintar, os temas, os materiais. Há como matar algo que já está morto? Será que ambos têm sete vidas como o gato?

Os textos reunidos no livro também compartilham com a pintura de Ana Júlia Vilela outro atributo: são crônicas - recortes de um cotidiano, com doses de ficção e realidade, facilmente relacionáveis a experiências próprias do espectador. A pintura de Ana, entretanto, pode roubar da expressão que dá nome ao gênero, a conotação médica: é crônica - constante, permanente. A artista certa vez me contou que nunca desiste de uma pintura. Por mais inacabada que uma pintura esteja, Ana sempre encontra uma maneira de "fazê-la funcionar". Ou será que é a pintura que nunca desiste dela, que conserta a artista? Que se deixa preencher por camadas, rasuras, desenhos, até que se torne algo mais próximo, mais íntimo.

As pinturas de Ana Júlia Vilela habitam um espaço entre a figuração e a abstração; entre uma ficção e uma experiência; entre uma memória própria e uma história contada por outra pessoa. Talvez seja por essa interface do entre, nesse intermezzo, que se torna possível, para a artista, explorar essa multiplicidade. Em uma tentativa de organizar tantas diferenças - figurações, textos, abstrações - a artista apresenta também suas pinturas como instalações, tentando unificar, contextualizar os sentidos entre elas. Mais importante, entretanto, é o público criar as suas próprias relações, suas próprias correspondências - seja encontrar a figuração presente na abstração da artista, bem como reviver suas memórias e experiências.

Esse processo de criar uma relação presente com a memória é um artifício constante nas obras de Ana. Cada pintura funciona quase como uma página de um diário esquecido por alguns anos no fundo da gaveta, escondido da leitura dos irmãos, confidenciado apenas aos amigos mais próximos. As cores, já um tanto dessaturadas, indicam uma intensidade latente, o fulgor da recordação de um sentimento, o ensaiar de uma conversa que não aconteceu ainda, o cheiro no travesseiro do perfume do amante que ainda perdura na fronha depois do término. São, estas, experiências comuns e que se repetem ao longo de uma vida, mas que a cada reincidência se apresenta de uma maneira única. A cada morte do romance, há sempre um outro se ensaiando. É ainda clichê dizer que a cada término, há um recomeço? Se for, tudo bem.

Talvez o romance nunca tenha morrido, assim como a pintura. Talvez ele tenha morrido e substituído por outra coisa e ninguém percebeu. Talvez a pintura seja o novo romance e o romance a nova pintura? Que a pintura morreu, não tenho dúvidas, assim como não tenho que ela segue viva, mesmo que outra coisa. Ana Júlia Vilela ainda insiste na pintura e no romance. Talvez quando ela desista dos dois, eles deixem de existir por um breve momento, ao menos para ela. Eu sei, entretanto, que o romance e muito menos a pintura desistiriam dela.


Chico Soll,
Outubro, 2021